Querida Lauren,
É provável que não vás ler o que te escrevo nesta mensagem perdida no mundo virtual. De entre centenas que te devem chegar. Sei que poderás não dar valor sequer às primeiras linhas, sem saber tudo o que está a seguir. Espero que não. Espero que sejas a actriz que lê com atenção, como se fosse o próximo argumento a escolher. Sou um fã do teu trabalho e toda a gente irá dizer que não sou o único. Mas sou. O teu único fã real.
É provável que não vás ler o que te escrevo nesta mensagem perdida no mundo virtual. De entre centenas que te devem chegar. Sei que poderás não dar valor sequer às primeiras linhas, sem saber tudo o que está a seguir. Espero que não. Espero que sejas a actriz que lê com atenção, como se fosse o próximo argumento a escolher. Sou um fã do teu trabalho e toda a gente irá dizer que não sou o único. Mas sou. O teu único fã real.
Encontrei o teu talento no filme que menos esperava. Violento, sangrento,
mesmo que a fingir. Eras a inocência de toda a história. Eras o medo a ganhar
forma bela e graciosa. Eras a esperança a cada minuto onde o ódio se fazia
sentir. Eras a coragem que nenhum de nós consegue viver no dia a dia, quanto
mais para representar a luta contra o maior horror da humanidade. Graças a ti,
todo o filme teve o sentido esperado, mesmo que não fosses a actriz principal.
Mas a personagem era para ti e só para ti.
Nunca esperei encontrar-te ali numa história de nazis e americanos, no
entanto, de seguida, fui procurar tudo o que fizeste. Porque se conseguiste
mergulhar no estrelato de Hollywood com tal interpretação, seria porque não era
novidade. E procurei. E encontrei.
Foste a amiga perfeita, amor platónico que se transforma, num filme onde o actor americano queria ser melhor do que tu, mas não conseguiu. Nenhum actor ou actriz te supera mesmo quando te chamam de secundária. Mesmo quando neste mundo machista, o actor principal nunca recebe o mesmo – salário, criticas, apreciação, mérito - que a actriz principal. A história era lindissima e gostava que ficasse claro o quanto quem escreveu o guião sabia de relações humanas. Mas tu elevaste o sentimento. Fizeste com que cada espectador com coração – homem ou mulher – quisesse ser tu e sentir a mesma solidão ou ser a personagem masculina e poder beber o teu olhar triste, o teu sorriso timido, os teus medos escondidos.
Foste a irmã intuitiva num dos filmes mais intrigantes que me recordo de ver. Algo na história não batia certo, por demasiado minutos. Mas tu agarraste a atenção. Cada instante teu era mágico e isso criou ansiedade para saber como iria a tua personagem resolver-se. Se irias descobrir a tua mágoa. Se irias desvendar o que supostamente era o motor do filme. Mas podiam ser mais duas, três horas, no desespero de saber o que aconteceu com o teu irmão. E eu, ou qualquer outra pessoa com alma, iria desesperar contigo. Mas firme, mas próximo, mas ao teu lado. Mas dentro de ti. Não há vazio que queiras exprimir que não transmita luz. Não há depressão que queiras encarnar que esconda a tua beleza.
Questiono frequentemente como fazes isso. Como é que os teus olhos transparentes pintam uma tela real da personagem. Como se toda a tua vida tivesses vivido essa pessoa a fingir que alguém escreveu para ti. Trouxeste os sorrisos ideais para cada instante. O teu tom de voz faz flutuar o encanto de qualquer cena. Como fazes isso?
A um dado momento, perdi coragem de voltar a encontrar-te na sétima arte.
Magoava-me em conjunto com as tuas personagens e precisava de alegria, de
distância, de saber distinguir a ficção da realidade. Ou o que é real e o que
deixou de ser.
Mas o destino fez-me chocar contigo noutra história de ódio e nazis. Foi um actor mais velho do meu tempo que entrava nesse filme, que me voltou a fazer-te encontrar. Mais conhecido, mais experiente, mas muito menos tudo que tu. E desde que vi esse filme, prometi ser diferente. Para o mundo, para mim mesmo, para ti. Porque nem duas mãos cheias de filmes sobre o tema me despertaram a sensibilidade do assunto da mesma forma que a tua personagem deixou ali. As tuas lágrimas tornaram-se uma personagem à parte. O grito preso no teu pescoço gentil, desde o principio até ao fim, era uma lâmina que eu própria sentia na minha garganta. E que nem o final do filme conseguiu consolar. Como um passado que queremos mudar e nem com mil filmes conseguimos transformar para melhor.
Fiquei diferente e tinha que te encontrar mais vezes. Agora tinha que falar contigo, de alguma forma. Tinha que ganhar coragem para pelo menos escrever-te, confessar-te o que senti e ainda sinto a cada filme. E desde então que tento encontrar as melhores palavras para te dizer. Para me distinguir de qualquer outro fã teu. Porque deves ter fãs maravilhosos. Pessoas que conseguem chegar a ti com uma alma imensa. Que se revêem nas tuas personagens ou até só nos teus traços belos e angelicais. E creio que tu deves apreciar muitos desses fãs. Estou certo que deves responder a alguns e inspirar-te neles para o próximo projecto, o próximo filme, o próximo pedaço de ti. E eu agora serei apenas um desses fãs. Que ganha consciência que pode não ter resposta, mas que deseja no seu intimo ter um qualquer tipo de resposta. Fiquei diferente e quis encontrar-te de novo. Mas para já, preciso de escrever-te.
Cada vez que te encontro inédita num filme, algo de mim se transforma. Nem sempre irrompo como como uma árvore viçosa. Muitas vezes murcho como uma flor decadente. Mas é sempre como se descobrisse parte da minha vida. Os meus erros, as minhas virtudes. O que podia ter feito antes. O que devia ter dito. No momento, ou depois. Não sei se és tu que me ensinas ou se apenas me envolvo nas personagens. Mas por perceber o quão intensos e reais e desafasados da ficção, são os meus encontros contigo, já quis tentar largar-te. Achar que não terias mais talento em qualquer outra aventura. Acreditar que nem sempre os melhores argumentistas sabem entender a alma e corpo de contadora de histórias que vive em ti.
Encontro-te em filmes improváveis. De histórias e diálogos que não imaginava poderes decorar, ou sentir, por não serem a realidade que te foi dada. Mas a vida é muito mais que um labirinto. São caminhos cruzados e sinais que nos movem para os atalhos mais inconcebiveis. Encontrei-te numa película onde eras uma mulher revolucionária. Rebelde. À frente do seu tempo. Fria. Amavas sem o dizer. Desejavas sem te oferecer. Morrias por amor, nem que fosse de uma causa. E aí doeu, porque aquela história era também um pouco minha. A luta foi a que outrora lutei. O sangue foi o que vi derramado. O medo da tua personagem era o meu. E tremi e não sei quem te escreveu o guião. Não fui eu. Mas queria ter sido eu. Ser eu a escrever o que vives.
Enquanto ganhava coragem para me dirigir a ti e invadir o teu mundo de estrela, encontrei-te de novo. Num filme negro, demasiado negro. Numa história escrita por um escritor premiado, mas que jamais sonharia em poder ter uma actriz como tu a vestir uma personagem por ele criada. Não eras de novo principal, mas eras quase tudo o resto. No caminhar soturno e trágico até ao fim daquela ficticia avenida cinzenta. Sim, eu senti que a tua personagem não iria sobreviver ao fim do filme. Por entre uma história tão sinistra, era pecado que ela vivesse naquele mundo sem sentido, com uma falsidade tamanha. Nem a tua nudez insensivel e despida de alma merecia um minuto mais que fosse naquele filme.
Antes destas palavras, a última vez que te encontrei eras música. E alguém realizou de ti, aquilo que até então só eu me tinha apercebido em breves cenas de outros filmes. As tuas mãos representam tão bem e essa foi a chave de todo um filme em si fraco, mas que se elevou contigo. Filmar a tua mão a dançar ao frio, imaginando que dedilha um instrumento de cordas, foi sublime. Sei que houve um trabalho grandioso de quem imaginou aquela cena, mas tenho ainda mais convicção que deste de ti e das tuas mãos o que ninguém esperaria. Nem mesmo o realizador.
E agora que te escrevo, encontrei praticamente tudo teu. A tua alma, o teu olhar. A tua dor e a tua alegria. Os teus traços, as tuas lágrimas. O teu sorriso e a tua voz. A tua esperança mas o teu fim. O teu caminhar e finalmente as tuas mãos. Falta que me encontres.
Desculpa. Sou mais do que um fã. Vivo com as tuas personagens e com a magia que elas respiram. Morro um pouco com as tuas criações, aquelas que de algum modo não terminam os filmes. A tua vida é a minha sétima arte e sempre lutei para apenas conhecer o teu talento. Nada mais do que isso.
Escrevo-te agora porque sou mais do que um fã. Porque a tua próxima
interpretação pode não chegar em bom tempo ou pode recriar o que eu mais temo.
Se leres isto ou se algum assessor teu te deixar ler isto, pode parecer-te
ficção. Não o é. Se estás a ler isto num camarim de um estúdio de Hollywood ou
na tua casa de Paris onde foste criada, espero que o leias sentada. Imagino que
transpareces serenidade nas mãos, mas ansiedade nos lábios. Deduzo que tenhas o
queixo firme, mas os olhos trémulos.
Quero ver-te. Outra vez ou pela primeira vez. Como se estivesses nos meus
braços de novo e novamente não soubesses quem sou. Como se apenas tivesses que
ensaiar a melhor reacção possivel. Como se nada fosse ficção e tudo te pudesse
ser contado sem ser por um realizador atrás de uma câmara. Quero ver-te, mesmo
que não o mereça. Abandonei-te para te dar o mundo. E tu seguraste o mundo e o
universo e as estrelas e todos os palcos que quiseram ser pisados por ti.
Tu sabes que comigo não tens de representar, Lauren. Não tens que dizer
nada e não tens que fazer nada. Mesmo nada. Uhm, talvez só assobiar. Tu sabes
assobiar, não sabes, Lauren? Pões os lábios um contra o outro e...sopras.
Sei que me lês em Paris. Era lá que a tua mãe queria que vivesses até ao fim dos dias. Foi isso que ela me prometeu antes de me beijar pela última vez. E eu sempre odiei Paris. Sei que deves ter um namorado judeu, provavelmente não trabalha em cinema, mas deve querer escrever uma canção para o filme que deves estar a terminar de realizar. Eu sei que sim. A minha história e da tua mãe não é essa, mas muito próxima. Fugi de uma guerra para lutar noutra e nela cair. Vi meio mundo para encontrar a tua mãe na Sorbonne, recusei outro meio mundo para dela não fugir. Mas não tinha um franco no bolso. Não tinha uma história boa para vender. Não tinha pernas para trabalhar, nem forças para lutar mais. E um dia, ela não voltou mais ao lado feio de Paris. Havia um lado mais brilhante, mais faustoso, mais promissor para a filha que eu perdi com a guerra e o álcool e o desespero e a fina linha entre a vida e a morte. A tua mãe escolheu o lado bonito de Paris e apaixonou-se pelo galante produtor de Gaumont. E eu dei a minha permissão. Mesmo que ela não tenha ouvido. E os dois contracenaram uma história de amor imensa, cheia de glamour e inspiração. E a minha criação passou a ser a transformação de outra pessoa. Alguém mais talentoso, mais dedicado, mais poderoso para tornar a minha filha na máscara mais cintilante do cinema francês e mundial. A escolha foi minha. Poderia ter lutado mais. Podia ter invocado a quem pertencia o futuro da tua educação. Podia. Mas não podia entregar-te mais. E a escolha foi dar-te o mundo. Mas foi desde que te encontrei pela primeira vez numa tela de cinema, a chorar numa mesa de cenário, a procurar conter a respiração e a citar palavras francesas que não eram tuas, mas que te pertenciam. Desde esse momento, sabia que eu tinha feito parte da tua vida. Que a minha escolha de não lutar te permitiu alcançares o céu. Mesmo que a este momento, ainda me odeies mais do que em qualquer outro momento ilusório onde tenhas suposto que eu pudesse existir. O meu drama era o teu romance, a tua história encantada vivia ao lado da minha floresta assombrada. E nenhum argumento do que viveste podia ser escrito de forma diferente. Ninguém conseguiria realizar um sonho mais audaz que o teu.
O mundo precisa do teu talento. Eu preciso do teu talento. E não conheço a minha filha sem ser pelas suas personagens. Mas conheço-te melhor que qualquer um dos fãs ou qualquer realizador que precise de várias tentativas para recriar uma cena contigo.
Escrevo-te como qualquer pessoa cheia de sonhos e ilusões, que acha que
consegue fazer mover o coração da sua estrela preferida e ser o fã número um.
Daqui a uns dias irei acordar e conceber de novo que há um universo que nos
separa. A ficção da realidade. A fama do anonimato. Entretanto vou ver o teu
último filme. Aquele em que finalmente conseguiste contracenar com a tua melhor
amiga francesa e que já tardava em ser criado algo onde as duas fossem
protagonistas. Arqui rivais uma da outra. E sei como vai acabar. Eu sei. Porque
és o talento que eu criei.
Com amor, de um fã.