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6 de março de 2018

Com amor, de um fã.


Querida Lauren,

É provável que não vás ler o que te escrevo nesta mensagem perdida no mundo virtual. De entre centenas que te devem chegar. Sei que poderás não dar valor sequer às primeiras linhas, sem saber tudo o que está a seguir. Espero que não. Espero que sejas a actriz que lê com atenção, como se fosse o próximo argumento a escolher. Sou um fã do teu trabalho e toda a gente irá dizer que não sou o único. Mas sou. O teu único fã real.

Encontrei o teu talento no filme que menos esperava. Violento, sangrento, mesmo que a fingir. Eras a inocência de toda a história. Eras o medo a ganhar forma bela e graciosa. Eras a esperança a cada minuto onde o ódio se fazia sentir. Eras a coragem que nenhum de nós consegue viver no dia a dia, quanto mais para representar a luta contra o maior horror da humanidade. Graças a ti, todo o filme teve o sentido esperado, mesmo que não fosses a actriz principal. Mas a personagem era para ti e só para ti.
Nunca esperei encontrar-te ali numa história de nazis e americanos, no entanto, de seguida, fui procurar tudo o que fizeste. Porque se conseguiste mergulhar no estrelato de Hollywood com tal interpretação, seria porque não era novidade. E procurei. E encontrei.

Foste a amiga perfeita, amor platónico que se transforma, num filme onde o actor americano queria ser melhor do que tu, mas não conseguiu. Nenhum actor ou actriz te supera mesmo quando te chamam de secundária. Mesmo quando neste mundo machista, o actor principal nunca recebe o mesmo – salário, criticas, apreciação, mérito - que a actriz principal. A história era lindissima e gostava que ficasse claro o quanto quem escreveu o guião sabia de relações humanas. Mas tu elevaste o sentimento. Fizeste com que cada espectador com coração – homem ou mulher – quisesse ser tu e sentir a mesma solidão ou ser a personagem masculina e poder beber o teu olhar triste, o teu sorriso timido, os teus medos escondidos.


Foste a irmã intuitiva num dos filmes mais intrigantes que me recordo de ver. Algo na história não batia certo, por demasiado minutos. Mas tu agarraste a atenção. Cada instante teu era mágico e isso criou ansiedade para saber como iria a tua personagem resolver-se. Se irias descobrir a tua mágoa. Se irias desvendar o que supostamente era o motor do filme. Mas podiam ser mais duas, três horas, no desespero de saber o que aconteceu com o teu irmão. E eu, ou qualquer outra pessoa com alma, iria desesperar contigo. Mas firme, mas próximo, mas ao teu lado. Mas dentro de ti. Não há vazio que queiras exprimir que não transmita luz. Não há depressão que queiras encarnar que esconda a tua beleza.

Questiono frequentemente como fazes isso. Como é que os teus olhos transparentes pintam uma tela real da personagem. Como se toda a tua vida tivesses vivido essa pessoa a fingir que alguém escreveu para ti. Trouxeste os sorrisos ideais para cada instante. O teu tom de voz faz flutuar o encanto de qualquer cena. Como fazes isso?
A um dado momento, perdi coragem de voltar a encontrar-te na sétima arte. Magoava-me em conjunto com as tuas personagens e precisava de alegria, de distância, de saber distinguir a ficção da realidade. Ou o que é real e o que deixou de ser.

Mas o destino fez-me chocar contigo noutra história de ódio e nazis. Foi um actor mais velho do meu tempo que entrava nesse filme, que me voltou a fazer-te encontrar. Mais conhecido, mais experiente, mas muito menos tudo que tu. E desde que vi esse filme, prometi ser diferente. Para o mundo, para mim mesmo, para ti. Porque nem duas mãos cheias de filmes sobre o tema me despertaram a sensibilidade do assunto da mesma forma que a tua personagem deixou ali. As tuas lágrimas tornaram-se uma personagem à parte. O grito preso no teu pescoço gentil, desde o principio até ao fim, era uma lâmina que eu própria sentia na minha garganta. E que nem o final do filme conseguiu consolar. Como um passado que queremos mudar e nem com mil filmes conseguimos transformar para melhor.

Fiquei diferente e tinha que te encontrar mais vezes. Agora tinha que falar contigo, de alguma forma. Tinha que ganhar coragem para pelo menos escrever-te, confessar-te o que senti e ainda sinto a cada filme. E desde então que tento encontrar as melhores palavras para te dizer. Para me distinguir de qualquer outro fã teu. Porque deves ter fãs maravilhosos. Pessoas que conseguem chegar a ti com uma alma imensa. Que se revêem nas tuas personagens ou até só nos teus traços belos e angelicais. E creio que tu deves apreciar muitos desses fãs. Estou certo que deves responder a alguns e inspirar-te neles para o próximo projecto, o próximo filme, o próximo pedaço de ti. E eu agora serei apenas um desses fãs. Que ganha consciência que pode não ter resposta, mas que deseja no seu intimo ter um qualquer tipo de resposta. Fiquei diferente e quis encontrar-te de novo. Mas para já, preciso de escrever-te.

Cada vez que te encontro inédita num filme, algo de mim se transforma. Nem sempre irrompo como como uma árvore viçosa. Muitas vezes murcho como uma flor decadente. Mas é sempre como se descobrisse parte da minha vida. Os meus erros, as minhas virtudes. O que podia ter feito antes. O que devia ter dito. No momento, ou depois. Não sei se és tu que me ensinas ou se apenas me envolvo nas personagens. Mas por perceber o quão intensos e reais e desafasados da ficção, são os meus encontros contigo, já quis tentar largar-te. Achar que não terias mais talento em qualquer outra aventura. Acreditar que nem sempre os melhores argumentistas sabem entender a alma e corpo de contadora de histórias que vive em ti.

Encontro-te em filmes improváveis. De histórias e diálogos que não imaginava poderes decorar, ou sentir, por não serem a realidade que te foi dada. Mas a vida é muito mais que um labirinto. São caminhos cruzados e sinais que nos movem para os atalhos mais inconcebiveis. Encontrei-te numa película onde eras uma mulher revolucionária. Rebelde. À frente do seu tempo. Fria. Amavas sem o dizer. Desejavas sem te oferecer. Morrias por amor, nem que fosse de uma causa. E aí doeu, porque aquela história era também um pouco minha. A luta foi a que outrora lutei. O sangue foi o que vi derramado. O medo da tua personagem era o meu. E tremi e não sei quem te escreveu o guião. Não fui eu. Mas queria ter sido eu. Ser eu a escrever o que vives.

Enquanto ganhava coragem para me dirigir a ti e invadir o teu mundo de estrela, encontrei-te de novo. Num filme negro, demasiado negro. Numa história escrita por um escritor premiado, mas que jamais sonharia em poder ter uma actriz como tu a vestir uma personagem por ele criada. Não eras de novo principal, mas eras quase tudo o resto. No caminhar soturno e trágico até ao fim daquela ficticia avenida cinzenta. Sim, eu senti que a tua personagem não iria sobreviver ao fim do filme. Por entre uma história tão sinistra, era pecado que ela vivesse naquele mundo sem sentido, com uma falsidade tamanha. Nem a tua nudez insensivel e despida de alma merecia um minuto mais que fosse naquele filme.

Antes destas palavras, a última vez que te encontrei eras música. E alguém realizou de ti, aquilo que até então só eu me tinha apercebido em breves cenas de outros filmes. As tuas mãos representam tão bem e essa foi a chave de todo um filme em si fraco, mas que se elevou contigo. Filmar a tua mão a dançar ao frio, imaginando que dedilha um instrumento de cordas, foi sublime. Sei que houve um trabalho grandioso de quem imaginou aquela cena, mas tenho ainda mais convicção que deste de ti e das tuas mãos o que ninguém esperaria. Nem mesmo o realizador.
E agora que te escrevo, encontrei praticamente tudo teu. A tua alma, o teu olhar. A tua dor e a tua alegria. Os teus traços, as tuas lágrimas. O teu sorriso e a tua voz. A tua esperança mas o teu fim. O teu caminhar e finalmente as tuas mãos. Falta que me encontres.

Desculpa. Sou mais do que um fã. Vivo com as tuas personagens e com a magia que elas respiram. Morro um pouco com as tuas criações, aquelas que de algum modo não terminam os filmes. A tua vida é a minha sétima arte e sempre lutei para apenas conhecer o teu talento. Nada mais do que isso.
Escrevo-te agora porque sou mais do que um fã. Porque a tua próxima interpretação pode não chegar em bom tempo ou pode recriar o que eu mais temo. Se leres isto ou se algum assessor teu te deixar ler isto, pode parecer-te ficção. Não o é. Se estás a ler isto num camarim de um estúdio de Hollywood ou na tua casa de Paris onde foste criada, espero que o leias sentada. Imagino que transpareces serenidade nas mãos, mas ansiedade nos lábios. Deduzo que tenhas o queixo firme, mas os olhos trémulos.
Quero ver-te. Outra vez ou pela primeira vez. Como se estivesses nos meus braços de novo e novamente não soubesses quem sou. Como se apenas tivesses que ensaiar a melhor reacção possivel. Como se nada fosse ficção e tudo te pudesse ser contado sem ser por um realizador atrás de uma câmara. Quero ver-te, mesmo que não o mereça. Abandonei-te para te dar o mundo. E tu seguraste o mundo e o universo e as estrelas e todos os palcos que quiseram ser pisados por ti.
Tu sabes que comigo não tens de representar, Lauren. Não tens que dizer nada e não tens que fazer nada. Mesmo nada. Uhm, talvez só assobiar. Tu sabes assobiar, não sabes, Lauren? Pões os lábios um contra o outro e...sopras.

Sei que me lês em Paris. Era lá que a tua mãe queria que vivesses até ao fim dos dias. Foi isso que ela me prometeu antes de me beijar pela última vez. E eu sempre odiei Paris. Sei que deves ter um namorado judeu, provavelmente não trabalha em cinema, mas deve querer escrever uma canção para o filme que deves estar a terminar de realizar. Eu sei que sim. A minha história e da tua mãe não é essa, mas muito próxima. Fugi de uma guerra para lutar noutra e nela cair. Vi meio mundo para encontrar a tua mãe na Sorbonne, recusei outro meio mundo para dela não fugir. Mas não tinha um franco no bolso. Não tinha uma história boa para vender. Não tinha pernas para trabalhar, nem forças para lutar mais. E um dia, ela não voltou mais ao lado feio de Paris. Havia um lado mais brilhante, mais faustoso, mais promissor para a filha que eu perdi com a guerra e o álcool e o desespero e a fina linha entre a vida e a morte. A tua mãe escolheu o lado bonito de Paris e apaixonou-se pelo galante produtor de Gaumont. E eu dei a minha permissão. Mesmo que ela não tenha ouvido. E os dois contracenaram uma história de amor imensa, cheia de glamour e inspiração. E a minha criação passou a ser a transformação de outra pessoa. Alguém mais talentoso, mais dedicado, mais poderoso para tornar a minha filha na máscara mais cintilante do cinema francês e mundial. A escolha foi minha. Poderia ter lutado mais. Podia ter invocado a quem pertencia o futuro da tua educação. Podia. Mas não podia entregar-te mais. E a escolha foi dar-te o mundo. Mas foi desde que te encontrei pela primeira vez numa tela de cinema, a chorar numa mesa de cenário, a procurar conter a respiração e a citar palavras francesas que não eram tuas, mas que te pertenciam. Desde esse momento, sabia que eu tinha feito parte da tua vida. Que a minha escolha de não lutar te permitiu alcançares o céu. Mesmo que a este momento, ainda me odeies mais do que em qualquer outro momento ilusório onde tenhas suposto que eu pudesse existir. O meu drama era o teu romance, a tua história encantada vivia ao lado da minha floresta assombrada. E nenhum argumento do que viveste podia ser escrito de forma diferente. Ninguém conseguiria realizar um sonho mais audaz que o teu.


O mundo precisa do teu talento. Eu preciso do teu talento. E não conheço a minha filha sem ser pelas suas personagens. Mas conheço-te melhor que qualquer um dos fãs ou qualquer realizador que precise de várias tentativas para recriar uma cena contigo.
Escrevo-te como qualquer pessoa cheia de sonhos e ilusões, que acha que consegue fazer mover o coração da sua estrela preferida e ser o fã número um. Daqui a uns dias irei acordar e conceber de novo que há um universo que nos separa. A ficção da realidade. A fama do anonimato. Entretanto vou ver o teu último filme. Aquele em que finalmente conseguiste contracenar com a tua melhor amiga francesa e que já tardava em ser criado algo onde as duas fossem protagonistas. Arqui rivais uma da outra. E sei como vai acabar. Eu sei. Porque és o talento que eu criei.

Com amor, de um fã.

27 de fevereiro de 2018

Do outro lado da porta

Deixar para tão depois de amanhã, o que podia ser feito agora.
Porquê? Porque não somos dotados do mais elementar senso de coragem e ímpeto de fazer. Fazer aquele gesto impulsivo. Dizer a confissão ousada. Tomar a decisão que custa e dói e pode ter consequências.
Não temos coragem. Do certo ou do errado? Do que nos faria ser únicos.
Mas o amanhã resolve.

18:32
Judy diz:
“…por vezes sinto-me tão cansada desta rotina, de voltar sozinha da faculdade, trocar as mesmas mensagens com as mesmas pessoas e nada de novo acontece.”

Wood diz:
“Mas ias ao jantar e disseste que estavas entusiasmada.”
Judy diz:
“Tenho que fingir que estou animada. E já tinha dito que ia.”

É uma pessoa com quem falo todas as noites. Cada uma das minhas noites vazias. É alguém que preciso para transformar o meu mundo numa coisa surreal. Tenho o meu universo real. Feito da faculdade que não consigo terminar, mesmo sendo uma aluna de topo. Mas parece eterno. Parece aborrecido e nada se transforma. Um universo composto pelo trabalho em part-time, com dezenas de telefonemas diários que afundam a minha auto-estima e necessidade de romper com o quotidiano entediante. À volta disto tudo, giram os mesmos hábitos, nos mesmos pratos para jantar, nas mesmas saídas à noite, nas mesmas páginas de internet visitadas. E depois existe a minha fuga surreal. É aqui que acordo. Que acredito que há algo além de todo este mundo banal e previsivel.

18:36
Wood diz:
“És linda! E não gosto de te ver adormecer nessa apatia. Eu sei que vais sair e divertir-te e conhecer algum gajo mais ousado, que satisfaz aquilo que te faz mesmo mulher….”
Judy diz:
“Não! Tu sabes que não é isso que quero…”
Wood diz:
“É o que vais fazendo…”

A sua sinceridade faz-me bem. Dói e interfere com o meu pensamento e a minha atitude. Envolve ciúmes à mistura e uma cobardia inexplicável. Mas este meu pedaço do mundo surreal é o que me faz sonhar. Querer ser melhor. É o meu ego mimado constantemente. Num momento está a dizer o quanto os meus lábios são a coisa mais criativa que um deus qualquer criou. No outro está a criticar-me, sem qualquer tipo de rede de segurança, mas com o maior carinho e interesse pela pessoa que sou, ou pelo menos que é vista atrás de um teclado.

18:41
Judy diz:
“Vou tomar banho”
Wood diz:
“Isso implica despires-te, certo?”
Judy diz:
“Sim J. E olhar-me ao espelho, como me pedes vezes sem conta para o fazer.”
Wood diz:
“És uma mulher fascinante. Mesmo sem nunca te ter visto nua. E continuo a dizer-te que deves ser confiante e até arrogante da beleza que trazes contigo. Quando te olhas ao espelho nua, tens essa certeza da forma mais pura.”
Judy diz:
“Pára com isso…”
Wood diz:
“Adorava poder presenciar esse momento onde sabes que és poderosa.”
Judy diz:
“És tu que te recusas sempre…. Eu já volto.”
Wood está a escrever...

Largo o telemóvel em cima do sofá, ignorando o que quer que fosse que o interlocutor pense ou ainda escreva. Quando regressar, logo responderei. Tenho 40 minutos para me despachar, sair de casa e enfiar-me no metro, para estar na Ribeira. Ainda na sala, dispo a sweat verde e desarmo o soutien. Na casa de banho, ligo a água quente. Dois minutos para a água aquecer. Tiro as calças de ganga para fazer tempo. Depois de atirar a peça para o cesto da roupa suja, enquanto me viro, encontro o meu reflexo no espelho. A minha pele acusa a transpiração de um dia cheio e os meus seios emanam um calor suave. Agora estou fixa ao espelho, lembrando as palavras trocadas minutos antes. Olhar-me ao espelho nua torna-me completa. Eu sei disso. Mas foi preciso alguém dizer-mo. Sem falsidades ou conceitos fúteis de beleza. Dispo as cuecas para que a sensação seja plena e procuro mais uma vez assimilar porque acredito naquelas palavras. Porque sigo religiosamente e quase em segredo a sugestão ousada do meu pedaço surreal.
Há dois anos e meio que é assim. Teclamos pelo computador e telemóvel. Isto e apenas isto. Dois anos e meio. À parte meia dúzia de fotografias no facebook, só conheço as palavras desta alma surreal. Todas as noites e alguns fins de tarde. Vivemos as nossas vidas distintas sem nunca nos termos visto pessoalmente. Nem uma única vez. E há um amor estranho, indefinido, pouco concreto, mas cheio de essência que nos une. Entre nós, por entre palavras e teclas e evoluções tecnológicas, partilhamos um afecto que se confunde com amor. Palavras perigosas, certamente. Mas carregadas com um carinho e uma motivação espiritual muito transcendentes.
Toco o meu corpo com gentileza. Com serenidade progressiva, deixando-me confortar pelas minhas próprias virtudes. Alguns defeitos. Mas acima de tudo aquilo que o meu corpo genuinamente me transmite com arrogância. Os lábios fatais que se transformam sempre num sorriso cativante, sem qualquer modéstia. O cabelo loiro com leves ondulações que descrevem quase toda a minha feminilidade. A pele macia que eu trato até à exaustão como se fosse o meu bom senso que eu estivesse a cuidar. Umas curvas sensatas. Que me elevam quando preciso, que me fazem de facto sentir bem diante de um espelho.
Evado-me e gasto mais água do que as minhas rotinas bem ensinadas usualmente me permitem. Tomo o meu duche e já não me apetece pensar sequer no que vou vestir ou como vou chegar à baixa do Porto. Penso em como a minha alma surreal e digital me conhece demasiado bem e me mima, mesmo a uma distância pouco compreensível.

18:48
Mensagens não lidas:
Wood diz:
“E se eu hoje não recusasse?”

19:12
Judy diz:
“Estou de volta... O que queres dizer com isso?”
Wood diz:
“O banho foi bom?”
Judy diz:
“Foi. Fiz de novo o que disseste. Ainda não me vesti.”
Wood diz:
“Portanto, significa que estou a falar contigo, estando tu nua. Como se eu estivesse ai.”

Estou a mentir. Vesti-me à pressa. O banho foi longo demais e já me restam poucos minutos antes de sair de casa. Vesti os primeiros objectos que surgiram à frente. Insinuar que estou nua é apenas parte do nosso processo de comunicação. Facilmente sou credível e sensual em mostrar que estou no meio da sala, completamente nua e a teclar com o meu vicio. Mesmo que do outro lado não acreditem, trocar mensagens com alguém pode ser apenas e só o que a imaginação pretende. Sem serem necessárias fotos a comprovar ou limitar estes momentos a um tédio de descrição. É assim há dois anos e meio. Decidi-me a meter conversa com esta pessoa numa altura que precisava de um elemento distante da minha realidade. Sem compromisso. Sem interferência Tive um namoro longo e conflituoso e sem conserto, com uma pessoa que a conhece. Virtualmente. E naquela época entendi ser a pessoa que me melhor iria entender os meus dilemas emocionais. Instinto. Loucura. Não sei. Sei que se criou uma empatia em comum galopante como jamais tinha sentido com um ser humano. E nunca o tinha visto ou tocado. Sabia que tinha palavras poderosas e sabia que estava em Lisboa. Tudo o resto era o que testemunhava nas palavras que acreditava e no que era transmitido, credível ou não. Nem sequer o rosto lhe conhecia. Os tempos modernos tornaram-nos assim. Distantes. Receosos. Mas ainda assim carentes.

Judy diz:
“Queres explicar-me o que queres dizer com o não recusar?”
Wood diz:
“E se eu estivesse a chegar ao teu prédio?”
Judy diz:
“?!....Como assim? Fiquei com o coração aos pulos!”
Wood diz:
“Se eu te dissesse que em cima da hora peguei no comboio porque me apeteceu e ganhei coragem para ir ao teu prédio? Se eu te dissesse que um vizinho teu deixou-me entrar no prédio, como um sinal que estou a fazer a coisa correcta?... Abrias-me a porta se eu te dissesse que estou neste momento à porta do teu apartamento? 3º andar, é isso?”

A campainha de casa toca ao de leve. Não percebo o que acabou de acontecer, mas a campainha da minha casa toca no exacto momento em que a minha alma surreal me diz o que até hoje nunca aconteceu. Durante dois anos e meio que peço gentilmente, que temos longas conversas sobre o querer conhecer, querer encontrar, querer um beijo. Talvez algo mais. Não sou assim tão louca e não me comprometo em envolver-me com alguém que só vi em fotografias e li em palavras. É verdade que sinto como se fosse mesmo real, como se conhecesse a pessoa há imenso tempo. Da mesma forma que sinto tanta coisa quando me olho despida no espelho da casa de banho, também aqui tenho momentos onde sinto que quereria fazer amor com esta pessoa. Durante dois anos e meio respeitei que a pessoa não me quisesse ver. Jamais entendi, mas respeito. Resigno-me. Aceito que isto é o melhor que consigo ter e já me é tanto. A minha alma surreal nunca me quis ver e sugere que um dia irá acontecer. Esse um dia é este instante, em que ainda tenho um estranho som de campainha a ressoar no meu ouvido.

19:16
Judy diz:
“Diz-me que não estás à porta. Ou diz-me que estás.”
Wood diz:
“Estou.”
Judy diz:
“O que é que mudou?”
Wood diz:
“Deixei-me levar e não pensar em nada, como dizes e agora estou aqui, junto à tua porta, com receio que não me aceites.”
Judy diz:
“Tenho medo de abrir a porta.”
Wood diz:
“Não abras.”
Judy diz:
“E deixo-te ai fora?”
Wood diz:
“Sempre estivemos distantes mas com proximidade. Que diferença fazem mais uns minutos?”
Judy diz:
“Estás mesmo à porta? Estou a segurar a maçaneta e não tenho forças para puxar.”
Wood diz:
“Sentei-me agora no chão. Suavemente. Encostei-me à porta. Consegues sentir-me?”

Estou incrédula. Gelada. Não sei o que pensar. Como agir. Desejo um momento assim há dois anos e meio. Achava até que nunca se iria concretizar. Que esta pessoa era um devaneio da minha personalidade virtualmente real, mas inalcançável. Procuro encontrar forças para distinguir o certo do errado, o real do imaginário, o sensato ou o que fazer com uma pessoa, que guardo um amor platonicamente digital, do outro lado da porta. E consigo sentir. Consigo sentir uma respiração que imaginei vezes sem conta. Consigo sentir a forma do corpo sentado. Consigo sentir o calor do corpo que está a um palmo de mim, à distância de uma porta de madeira, com cinco, dez centímetros de espessura. Viro-me, encosto as costas à porta de minha casa do lado de dentro e deslizo até me sentar no chão. Estou a chorar. A minha respiração atordoa-me e choro.

Wood diz:
“Estás aí?”
Judy diz:
“Estou. Estou sentada também. Do outro lado.”
Wood diz:
J
Judy diz:
“Isto é de loucos! Estou quase a desmaiar à porta de minha casa e não sei o que fazer.”
Wood diz:
“Tinha que ser assim. Com a distância mínima. Sentes-me?”
Judy diz:
“Sim! O que fazemos?”
Wood diz:
“Imagina que o meu corpo está colado ao teu.”
Judy diz:
“Sim…Está!”
Wood diz:
“Daqui a uns minutos posso entrar e não irei beijar-te.”
Judy diz:
“Não?!...”
Wood diz:
“Não. Irei olhar-te minutos a fio. Quero olhar-te como se mais nada seja preciso fazer.”
Judy diz:
“Conseguiremos fazer isso. Olharmo-nos. Somos capazes do mais inconcebivel.”

As palavras sempre chegaram. Sempre encheram as necessidades desta amizade. As palavras sempre irão chegar. Não irei exigir nada mais. Porque mesmo o que até agora foi imaginado em palavras e pressuposto e inventado e desenhado e contado como uma história, enche-me o interior. Nunca ninguém me elogiou assim. Nenhuma pessoa real, nenhum mimo depois de um orgasmo, nenhum jantar romântico, nenhuma troca de olhares provocou esta sensação de me sentir amada da forma que uma mulher se ilude desde menina. Seja uma amizade ou uma paixão platónica virtual. As palavras sempre chegaram, mas é incrivel a euforia de saber que é possivel agora haver uma troca de olhares sequer. E irei fixar o olhar por quanto tempo for possível. E irei entregar o meu olhar como se fosse a coisa mais valiosa que pudesse dar a alguém.

Judy diz:
“Porquê agora? Porque é que me vens visitar agora?
Wood diz:
“Não aguento mais sem saber o que é ver-te.”
Judy diz:
“O que mudou? Está tudo bem em casa?”

As nossas conversas ao longo de dois anos e meio rodearam em torno de mim. Dos meus vazios, das minhas inseguranças, de como dar-me força a valorizar o melhor de mim. Basearam-se em descrever o meu dia a dia, o que fiz eu hoje, o que penso fazer amanhã. De ajudar a tomar as melhores decisões. Profissionais, amorosas, sociais. Penso alto com as teclas e transmito o que me vai na alma. Sei que vou ser considerada e apreciada. Como se a minha vida e o meu pensamento fossem verdadeiramente importantes para alguém que não me toca, não me vê. E eu pergunto de retorno. Leio desabafos um pouco vagos, mas como se estivesse também num lugar que não conheço. E os desabafos são exactamente o motivo pelo qual não posso tocar na sua pele, não posso sequer ter um abraço, um café, uma conversa de voz. Porque não posso ter isto. A namorada tem uma doença grave, provavelmente fatal. E eu sinto a doença da namorada como se tivesse visto e tivesse reconhecido todos os sintomas e receasse o desfecho. A paixão é platónica, mas quase todas as noites desejo o melhor para a namorada. Ainda assim, um café, uma troca de olhares real, uma conversa, uma louca noite de amor irá destruir um lar já de si complexo, segundo consta, no outro lado do país.
E por isso sempre respeitei. Mesmo que sempre quisesse o pedaço ousado que imaginámos vezes sem conta. Mesmo que neste momento, ainda que assustada, quero pelo menos a troca de olhares.

Wood diz:
“Cansei-me de te prometer coisas, de parecer sempre em vão e de soar sempre a uma mentira.”
Judy diz:
“Quero-te! Quero-te muito de uma forma que nem sequer consigo conceber ou prever. Mas não quero destruir nada do que tens.”
Wood diz:
“Eu estou bem. Como estás tu?”
Judy diz:
“A tremer por todos os lados. Nem sei como consigo escrever agora.”
Wood diz:
“Estamos tão perto. Imagina que quando me deixares entrar, eu sei que vou querer beijar-te. Sei que te vou querer levar para o teu quarto e saber onde me falas todas as noites.”
Judy diz:
“Menti-te. Não estou nua.”
Wood diz:
“Como estás vestida?”

Eu descrevo-lhe aquilo que consegui vestir, confusa de saber se estou a exagerar e provocar, ou se estou a descrever factualmente aquilo que irei mostrar. Estou com calafrios e não consigo raciocinar direito. Olho para a minha sala sem um foco especifico e tento perceber porque estou sentada ali. A ideia da campainha a tocar ainda ecoa nos recantos do meu subconsciente. Tento capacitar-me que já estou atrasada.

19:33
Wood diz:
“Eu sei que tens que ir e não te quero atrasar, mas hoje vou ficar contigo.”
Judy diz:
“Não vou a lado nenhum. Estás a preencher de novo a minha noite.”

Quantas vezes deixei de sair com pessoas, para poder esperar online por uma conversa assim? Quantas chamadas despachei, de pessoas reais, para contar como foi o meu dia e esperar pelo melhor conselho possivel? Podia durar até às duas da manhã. Ontem à noite foi até à uma da manhã, mesmo tendo eu que trabalhar cedo. Estivémos a falar sobre a namorada e em como aquilo são umas algemas consentidas. É um namoro de dez anos e que tem muito mais já envolvido do que saúde ou doença ou a mera ideia de amor ou falta dele. Tem mais escondido do que uma simples história de casal, de lar, de uma familia muito diferente do comum. Estivémos a falar sobre isto, em dezenas de milhar de teclas, ou de como seria se eu estivesse perto. De como eu iria respeitar a relação e que apenas e só quero ser amiga. Mesmo que o desejo supere a minha racionalidade. Não é uma atracção fisica. A primeira vez que vi uma fotografia já tinha um desejo pela alma que se me apresentava em formato de escrita. São palavras fortes, são emoções bem expressas, são contextos em que eu consigo visualizar a pessoa perfeita, que consegue dizer as coisas certas, mesmo quando me custa aceitar. Não sou louca. Quando vi a primeira fotografia, meses depois, é como se concretizasse o que a minha mente imaginou. Estava tudo lá, em formato humano. Mas continuavam a chegar-me as palavras, o mundo imaginário que criámos e construimos e tornámos normal. Por dezenas de vezes idealizámos um primeiro encontro. Nunca concebi que pudesse ser neste exacto local.

Wood diz:
“Leva-me para o teu quarto. Não quero dizer-te palavras bonitas.”
Judy diz:
“Estou cansada de palavras! J
Wood diz:
“Quero tocar cada centimetro teu. Conhecer os teus ombros. Já te disse como imagino os teus ombros?”
Judy diz:
“As asas de um pássaro que torna tudo quem sou mais leve que uma pena.... Já disseste.”
Wood diz:
“Quero ter o privilégio de abraçar o teu corpo despido por uma noite inteira. De serem as tuas mãos, aquelas que sabes que adoro, a tocar-me. Sem sexo, sem desejos mal racionalizados, sem tudo parecer que tem a ver com carne...”
Judy diz:
“Mas eu quero isso. Quero sexo. J
Wood diz:
“Pela manhã, pode ser? Temos sexo insane pela manhã.

E continuamos nas palavras, sem as largar. Poderemos passar os próximos minutos a simular uma cena de sexo, mas irá ficar a tilintar na pele a sensação de que conseguimos fazer magia com a nossa imaginação, sem haver uma única troca de fluidos. E acredito que quando abrir a porta, ninguém mais irá apreciar o meu corpo tão instintivamente e tão graciosamente, como a pessoa que está agora nas minhas costas. Então porque é que não conseguimos abandonar esta virtualidade?

19:51
Wood diz:
“A tua vida não é assim tão complicada, Judy. És inteligente, astuta. Sabes bem onde queres chegar com a tua carreira e não irás deixar ninguém atrapalhar isso. Tens uma beleza especial. Não pelos teus lábios, não pelos teus olhos fantasiosos...bolas, nem tem a ver com esse cabelo de actriz... És linda quando sorris e tudo se abre para o teu intimo.”
Judy diz:
“Só tu me vês assim.”
Wood diz:
“E nunca conseguiste dizer que estava a mentir ou a exagerar.”
Judy diz:
“Porque sei que estás a dizer a verdade e não terias razão para mentir. Nunca me quiseste levar literalmente para a cama.”
Wood diz:
“Excepto esta noite...”

Dois anos e meio nestas conversas irrecusáveis. Deliciosas, mas complexas. Quentes, mas imaginárias. Enriquecedoras, mas inconsequentes. E até agora, em que falta tomar o passo corajoso, estou a adiar o momento em que tudo isso pode terminar. Estou a degustar o que a maioria das noites me satisfaz mais do que sexo com qualquer outra pessoa. O que me faz sentir mais amada que qualquer namoro que tive. Noutra noite de teclas, estaria praticamente já deitada na cama e a minha mão a sentir o calor do meu corpo. As frases meigas e fortes e inteligentes e criativas e dedicadas que correriam no meu telemóvel seriam mais genuinas que qualquer voz que eu anseie agora por ouvir. Mas aqui estou eu, num lugar que nunca experimentei ser-me, a entender quando é o momento certo para abrir a porta.

Wood diz:
“Quero tanto isto, mas não sei como o fazer. Sei como o desejar, mas não o sei concretizar.”
Judy diz:
“Vou ajudar-te. É a minha vez de te guiar. Não precisas mais de ter medo.”
Wood diz:
“Acho que ainda não consigo.”
Judy diz:
“Estás tão perto! Deixa-me abrir a porta e trazer-te. Estou aqui...”
Wood diz:
“Eu sei. Eu é que sou cobarde.”

Já estive para abandonar tudo algumas vezes. Dizer numa conversa frontal que isto é uma brincadeira de crianças e fazer um ultimato. Deixar de falar, de aparecer online. Exigir aparecer logo. Já tive vergonha de confessar a outros e a mim própria que tenho uma relação virtual sem nunca ter estado com a pessoa. Gosto de ser louca, mas só nas teclas e na minha imaginação. Já dei por mim a não saber distinguir a realidade desta surrealidade. Não sei se há cobardia do outro lado da porta. Sei que não conheço a vida das outras pessoas para abdicar de uma fantasia e realidade paralela como esta, só porque o mundo nunca viu algo assim. Tão genuinamente inocente mas ao mesmo tempo absurdo. E há dois anos e meio que tento gerir este balanço entre não perder o que existe e querer mais que isto.

Judy diz:
“Tens que enfrentar esses medos. Eu posso levar-te para a minha cama e posso deixar-te tomar conta de mim, do meu corpo. Da minha boca. Dos meus seios. Mas também posso levar-te para a minha cama e adormecermos no mesmo sitio. Um beijo! Só te peço um beijo e que me deixes saber ao que sabe a tua boca. Mas se não quiseres nada disto, não tens que ter medo. Não é proibido eu olhar-te. Não mata ninguém nem é traição se estiveres na minha casa, só a ser.
Wood diz:
“Se olho uma vez para ti....”
Judy diz:
“Já sei...não podes voltar atrás. Merda, até me sinto insultada com isso! Não consegues estar ao pé de mim sem te controlares?”
Wood diz:
“Desculpa, são só os meus medos e os meus traumas.”
Judy diz:
“Enfrenta isso! Não vou roubar-te!”
Wood diz:
“Quando enfrentamos os medos, eles por vezes tornam-se em nada.”

Estou muito cansada. É um circulo vicioso sem fim. Não tenho direito a sentir-me enganada, porque eu aceito isto. Nunca foi feita nenhuma promessa que eu ingenuamente acreditasse. Nem mesmo o desejo do lado de lá da linha, que um dia irá acordar e tudo ser diferente e possivel. Não acredito em suposições, apenas me deixo fantasiar com elas, no mesmo mundo em que teclamos. Estar neste jogo é escolha minha e faz-me bem. Mas cansa. Cansa de me deixar levar pela corrente e depois despertar, para sentir que há uma promessa ilusória por detrás da porta, da linha, da vida.

20:03
Judy diz:
Ok...desisto. Queres ir embora, é isso?”
Wood diz:
“Não quero ir embora. Tu sempre queres ir ao jantar?”
Judy diz:
“O quê?!... Não!... Estás ai e mesmo que não tenha ainda aberto a porta, não vou deixar-te fugir!”
Wood diz:
“Um dia vais abrir-me a porta.”

O som da campainha de novo a ecoar na minha mente. Um estalo forte na minha noção de realidade. A sala que tenho diante de mim parece mais vivida que há uns minutos atrás e já não tenho a mesma sensação nas costas, o mesmo calor que senti desde que me sentei aqui. Olho para o telemóvel e não há seguimento de conversa. Levanto-me bruscamente e julgo mesmo ter ouvido de novo a campainha. Sem pensar mais, sem ter receio de seja o que for, abro a porta.

Wood diz:
“Não sei quando vai ser, mas eu vou ganhar coragem e vou ao Porto e quero sentir-te de alguma forma.”


- Natalie?!...

Eu chamo-a com a minha voz real mas não está ninguém no corredor. Espreito para o lado esquerdo e para o lado direito e nada. Um vazio imenso, como se o corredor escuro nunca tivesse tido vida a passar. A realidade volta a colidir-me frontalmente, trazida com violência pela virtualidade que aceitei experimentar.

Judy diz:
“Natalie....”
Wood diz:
“É fabuloso mergulhar numa fantasia contigo. Adorava mesmo poder sentir isto e deixares-me entrar.”
Judy diz:
“Eu espero-te o tempo que for preciso, Natalie...mas isto não me está a fazer bem.”
Wood diz:
“Eu sei. E é injusto o que eu faço. Arrastar-te para ilusões em palavras.”
Judy diz:
“É escolha minha também....Tenho que ir. Amo-te.”
Wood diz:
“Amo-te! Diverte-te...”

Agora. Não amanhã.
Fazer aquele gesto impulsivo. Dizer a confissão ousada. Tomar a decisão que custa e dói e pode ter consequências.

Não temos coragem, porque a realidade não nos permite ser assim tão únicos.

20 de fevereiro de 2018

Janela Discreta

        
Amar não é uma noticia do mundo. A fortuna de partilhar a vida com alguém é deixar tudo tão secreto, tão intimo, tão desligado de olhares e julgamentos alheios. E ser feliz.

Encontrei-a com urgência na tarde seguinte, no mesmo sitio que ela sempre escolhia para conversas mais sérias. O café do outro lado do rio. Gentil, rústico, ancião. A tarde estava bonita, fresca de Primavera, ausente de corrupio. Notei a presença de uma sensação de segurança quando ela percebeu que mais ninguém estava no café.

         - O que se passa, Gloria?

Ela aguardava a minha pergunta. Eu esperava pelo silêncio dela. Mesmo que este fosse o ponto de partida para a conversa, mas era tão necessária a escolha da pergunta certa, como era essencial que ela medisse o que poderia responder. Gloria tinha a respiração disforme. Pendia entre a longa inspiração e a expiração por entre leves soluços. Como se quisesse começar a falar, mas nada lhe saisse. As mãos dela tremiam sorrateiramente. Mãos bonitas, meninas, cientes de terem grande parte da sensibilidade dela na ponta dos dedos. O seu olhar balançava entre o balcão do café onde o funcionário preparava os nossos longos cafés, o meu rosto ansioso e a janela ao nosso lado, que dava para a serena vista sobre Coimbra. Tais balanços faziam o seu cabelo ruivo dançar em frente do seu rosto bonito. Tomei como oportunidade o momento em que os cafés chegaram, o funcionário afastou-se e o olhar dela fixou-se no remoinho criado no copo, enquanto o açúcar amarelo se misturava no liquido.

         - Quem é ela?

         - Como sabes que é uma ela?

         - Porque estarias assim tão nervosa se não fosse uma ela? Se fosse um homem, seria algo normal.

         - Tu tinhas acabado de chegar com os meus pais, com os teus pais. Estava na cama com alguém. É normal que fique nervosa porque fui apanhada.

         - Quem é ela, Gloria?

Um longo suspiro foi expulso dos seus pulmões. Antecipava lágrimas ansiosas serem despoletadas dos olhos dela. Mas Gloria manteve-se o mais firme possivel. Na noite anterior, eu e os meus tios acelerámos a chegada a Coimbra, depois de irmos ao congresso em Lisboa. A minha prima não quis vir, cansada de congressos com médicos mais interessados em ver as vistas do que aprender e partilhar conhecimentos sobre pediatria. Ao entrar em casa, logo atrás dos pais de Gloria, percebi que algo não estava normal. Normal seria encontrá-la na sua secretária a escrever longos apontamentos para o complexo artigo que ela ambiciona concretizar para uma bolsa de estudo, nas horas vagas em que não está a dar aulas na universidade. Mas ao invés disso, fui perspicaz em perceber que os sons abafados vinham do quarto dela. Tão perspicaz que desviei os meus tios para a cozinha. Um brinde de vinho do Porto, que o meu tio me prometeu durante toda a viagem de regresso. Os sons foram cortados abruptamente. Os meus pais também percepcionaram a situação que ocorria. E acompanharam o plano. Gloria teve tempo de se compor e minutos depois juntar-se a nós na cozinha, já de pijama. Fingiu uma indisposição para recusar o copo de vinho e regressar muito brevemente ao quarto. À saida, lançou-me um olhar discreto de agradecimento, mas totalmente assustada. Quem quer que lhe estivesse a fazer companhia no quarto, conseguiu sair neste periodo de tempo.

         - Obrigado... Obrigado por teres percebido o que se passava...

         - Tens relações sexuais...dah?

         - O que achas que os meus pais fariam?

         - São teus pais! Preciso mesmo de dizer-te quão liberais os teus pais são? Achas mesmo que eles têm algum tipo de problema de estares com uma mulher?

- Pára com isso. Vai muito mais além disso. E eu não te disse que era uma mulher. Por acaso viste-a sair?.....A pessoa. Viste quem era a pessoa?.....

- Posso saber quem é ela?

A sua mão direita dedilhou de forma compulsiva em cima da mesa. Era o periodo de reflexão dela. Bebi um longo gole de café sem nunca tirar o olhar de todos os seus tiques. Por um momento senti que iria ser uma tarde muito extensa, até ela retirar o esqueleto do armário. Somos primos e amigos. Não diria que sou o seu melhor confidente. Mas, tal como naquele momento, em que ela batalhava por ter coragem de juntar sílabas para dizer um nome, sou o confidente mais confiável que ela tem.

- Grace...

Ao mesmo tempo que o meu rosto congelou, apercebi-me que tinha retirado uma angústia do semblante da minha prima. Como se pela primeira vez ela tivesse expressado ao mundo o seu maior segredo e isso a tivesse libertado.

- Grace?! A tua amiga Grace?... A bff da Gloria?... Estamos a falar da mesma Grace? A psicóloga prodigio?... A solteira mais cobiçada de Coimbra?

- Que exagero! Conheces assim tantas mulheres com este nome? Sim, a Grace.

- Foste para a cama com a tua melhor amiga?

- Ela não é a minha melhor amiga. Ou melhor, é. Mas é mais do que isso.

- Há quanto tempo dura isso?

- Desde sempre.

Não era desde sempre. Grace tornou-se uma pessoa muito próxima de Gloria desde há qualquer coisa como três anos, talvez quatro. A minha prima atravessou um periodo complicado na vida e a presença de Grace nos mesmos cafés e esplanadas que eu frequentava com ela e o nosso grupo de amigos, coincidiu com um novo sorriso no rosto da jovem. E novos amigos que chegaram vindos do lado de Grace. E novos hábitos. E um grupo de amigos reajustado e aumentado. E um alivio para a familia. Grace era a amiga e o conforto que qualquer ser humano deseja. Impetuosa e afectuosa. Bonita e saudável. Cheia de bons vicios e alegria para distribuir. Gloria acompanhava-a em quase tudo, mas com a distância certa. A jovem loira, de traços aureos e postura suave era uma pessoa conhecida na cidade. Formada em Psicologia, era frequente ela ser reconhecida como uma jovem com um futuro brilhante à sua frente. Destacada nos meios de comunicação por ser uma psicóloga fascinante, mas tão nova, Grace era ao mesmo tempo uma mulher comum. Discreta. Batalhadora, mas divertida. Bonita, mas lúcida. Talentosa, mas capaz de falhar. Dai que a amizade com a minha prima soava a algo muito normal. No entanto, olhando mais profundamente, conjecturando sobre o seu perfil, Grace e a sua amizade com Gloria poderiam de facto adivinhar algo mais complexo.

- Fazemos anos no mesmo dia, sabes disso...

- Sim. Mesmo que nunca façam festas em conjunto.

- Sabias que passámos as primeiras horas de vida uma ao lado da outra?

Um sorriso timido de magia libertou-se dos lábios de Gloria. Franzi o olhar porque apercebi-me que ali estava o inicio de uma história muito particular. Muito intima. Muito secreta. Afinal, a amizade das duas era evidente para todos nós. Sabiamos que eram próximas e o quanto eram o suporte uma da outra. Mas à parte um ou outro detalhe que as unia, ninguém de facto poderia perceber o que estava por trás de todas as portas que elas fechavam. A tarde estava lindissima. Caía um céu laranja sobre a torre da universidade e o rio Mondego desaguava num tempo sem fim.

- A minha mãe estudou no Liceu com a mãe dela. E embora as duas tivessem estudado em Coimbra....

- A tua mãe seguiu Medicina....

- A mãe da Grace é psicóloga. Mas perderam contacto até esse dia da maternidade. Acho que foi mesmo o destino, o dom da minha mãe e da mãe dela que nos uniram.

- Estás a gozar com a minha cara... Elas sabem?

- Não! Não podem saber. Namoramos, mas é nosso. De mais ninguém. Se tu não sabias, se os nossos amigos não sabiam, que diferença faz?

- Ninguém tem nada a ver com isso. Ninguém tem nada a ver que gostas de uma mulher. Bolas, a tua outra amiga é lésbica....

- Não é isso! Não tem nada a ver com ser lésbica! Mas não queremos que ninguém saiba. É uma coisa nossa!

- Porquê?!

- Amo a Grace e não a quero perder. Gosto de viver por causa dela.

Mais uma vez, Gloria queria chorar. O olhar focou-se em mim para ganhar forças para falar. Era evidente que o objectivo dela em encontrar-se comigo não era para fugir, para se esconder ou evitar falar. O acontecimento da noite anterior terá assustado a minha prima a ponto de entender que precisava de um aliado, que simplesmente entendesse.

- Não vou contar a ninguém, Gloria. E contas-me o que quiseres.

- Tu vês como somos. Não precisamos que alguém saiba que dormimos na mesma cama. Bem, enquanto vai dando... Não quero andar de mão dada só para saberem que ficamos bem juntas. Eu pego a mão dela para me segurar. Para me aquecer.

- E ela? Porque é que ela pega a tua mão?

- Porque eu sou o melhor que ela alguma vez já fez.

Era impossivel esconder a surpresa de uma frase tão forte, mas com um significado demasiado complexo. Ela não me contou como se conheceram ou como foi o primeiro beijo. Não me contou o que as uniu. Mas foram uma mão cheia de meias horas em que Gloria desbobinou o que era ter um namoro com Grace sem que ninguém percebesse. Sem que pudesse haver um boato. Sem que o mundo visse ali mais do que duas grandes amigas.

- Faziamos os treinos juntas e foi mais fácil de termos uma rotina em comum. Nenhum de vocês vai aos seminários e conferências dela. Mesmo quando ela vos convida. Eu vou!

- Quem é que quer ir ouvir psicólogos a falar?

- O mundo muda sempre mais um bocadinho quando a Grace fala. Ela é tão linda! E dedicada. Tu sabes o talento que ela tem.

- Sei. Nos últimos tempos só se fala de todos os elogios que ela recebe e que toda a gente quer trabalhar com ela.

- Eu sento-me sempre a meio das salas, para ela me ver e sentir-se segura. Até é bom que vocês não venham. Nada me distrai daquilo.

- Então isso quer dizer que não gostas de estar connosco.

- Eu gosto de vocês. Gosto de ti. Não leves a mal, mas vocês são como a cidade ali fora. Gira ao nosso redor. Mexe à volta de quem somos e nós tentamos fazer parte. Para ninguém desconfiar saimos sempre com vocês. Mas regressamos quase sempre até à casa dela. Eu volto para minha casa à noite dia sim, dia não. Ou dias diferentes. O meu pai assim desconfia menos. Um dia fomos vistas a beijar à porta de casa dela, pelo dono da frutaria à frente. E ficámos com medo.

- Mas porquê? Estamos no séc. XXI. A última vez que vi as noticias, vocês até se podiam casar neste país e até adoptar. Os pais dela não aceitam que ela seja lésbica?

- Não lhes faria diferença. Não é essa a questão.

- Então? Gloria, que raio?

- ....É fantástico poder acordar ao pé dela. Sentir o mesmo lençol a tocar na minha pele, na dela. Nem precisar de sair de casa. Mas ter que o fazer. É como se fosse sempre o primeiro dia de paixão, quando estamos no café da Baixa e vocês todos a falarem e nós a trocarmos olhares que mais ninguém vê. Como se só quisessemos sair dali e confessar que nos queremos.

- Gostam da sensação de perigo, é isso? De segredo, de mais ninguém saber que duas amigas são namoradas.

- Fazes soar como se fossemos duas miúdas adolescentes a descobrirem-se.

- É o que soa. Desculpa.

- A noite passada foi mais do que os gemidos que deves ter ouvido.

Fiz um ar de perdido, como se não soubesse do que ela estava a falar. Ou como se não quisesse incriminá-la de estar a ter prazer enquanto uma boa parte da familia poderia estar a ouvir. Mostrei o meu ar mais interessado, mas intrigado. Gloria esboçava um sorriso pouco familiar. Mágico. Inspirador. Galopante. Mas sóbrio.

- Passámos o dia todo em casa, enquanto vocês foram para Lisboa. Eu a escrever mais uma página do meu artigo. Ela a dobrar e a arrumar a minha roupa.... Sabes que a Grace... quando eu consigo que ela fique lá em casa... ela deixa sempre as meias dela para lavar, no meio das minhas. De vez em quando, alguém pergunta de quem são aquelas meias. A empregada não sabe, a minha mãe não faz ideia. E eu digo sempre que são minhas. Porque são minhas! E ter aquilo perdido na nossa casa, faz-me sentir que a Grace pertence-me e vive ali.

Desde que me lembro dela em criança, Gloria sempre foi uma rapariga bonita. Brincalhona, mas brincadeiras singulares. Jovial, mas com um olhar muito fechado. Como se mesmo que ela sorrisse, o olhar não combinasse. Durante anos, esta era a Gloria. Com o olhar soturno, com o mundo impedido de entrar dentro dela. Mas naquele café, enquanto Coimbra se ia preparando para acender todas as luzes, a minha prima irradiava uma plenitude que eu nunca tinha assistido. Descrever o dia delas a sós na enorme casa da familia dela, parecia um pequeno conto de fadas. A narração perfeita daquilo que qualquer pessoa quer viver. O mistério de porque é que ela mantinha uma relação assim em segredo ultrapassava-me. Mas eu já estava convencido que havia mesmo amor no olhar dela.

- Antes de vocês chegarem tinhamos decidido que vamos morar no Havai.

- Faz todo o sentido....ou não.

- Eu acabo o meu artigo, tenho a bolsa para Harvard e quando ela já não precisar de ter esta fama toda de ser a mente brilhante que é, partimos para longe daqui, onde ninguém nos conheça.

- Ninguém vos odeia, Gloria. Se amanhã alguém souber, ninguém vos vai queimar em praça pública ou apedrejar. Ninguém te vai forçar a casar com o filho do médico.

- Vamos ter uma casa no topo de Honolulu. Com uma janela assim parecida a esta. Até desenhámos ontem a janela como a imaginamos.

- E até lá?

- A Grace tem a gaveta dela no meu quarto. Aos olhos das pessoas somos tão amigas, que aquela gaveta podia ser confundida com uma minha. Mas é dela... Até lá, vamos às compras juntas e comprámos esta semana almofadas novas para a cama da casa dela. Até lá, as janelas dos nossos quartos estão como se morássemos no mesmo sitio. Até lá, ninguém precisa de saber que eu a amo. Porque ninguém sabe como eu a amo. Não têm que saber.

- Agora que penso, acho incrivel que nós não tenhamos pensado nisso. Como é que nunca deduzimos que há algo mais entre vocês.

- Ninguém comenta nada quando não estamos?

- Era a coisa mais óbvia e ainda assim, nenhum de nós o fez. Nem sequer por maldade ou brincadeira. Como é que os teus pais não põem essa hipótese? Os pais dela! Nunca ninguém lhe viu um namorado! Os pais não desconfiam?

- Não podem! Simplesmente não podem. Seria o fim de tudo.

Suspirei fundo. À consciência até da pessoa mais conservadora, não fazia sentido que duas mulheres adultas escondessem uma relação tão longa, suficientemente estável, bastante melodiosa de se ouvir em pormenor. Não havia nenhuma razão para o mundo apenas ver duas amigas e não sentir o impacto da felicidade que parecia existir entre Gloria e Grace. Peguei no telemóvel e senti-me tentado a ir ver o facebook da minha prima. Ela percebeu o que eu estava a fazer e pediu uma garrafa de água para acalmar o ambiente. Gloria não se incomodou de perceber que eu estava a deslizar as fotografias da página dela. Eu esboçava diferentes reacções. Apercebia-me agora que toda aquela relação estava à frente do nosso nariz. Em todos os momentos. E ainda assim, nada as incriminava. Elas não se comprometiam. O mundo está moldado de tal forma que duas mulheres bonitas, bem sucedidas e inseridas no mundo social de Coimbra, apenas passam por duas amigas. No entanto, conforme as fotografias revelavam a sua antiguidade, emergia uma espécie de cronologia inversa. Até ao momento que deixa de existir fotos onde Grace surgisse. A ausência da jovem loira era substituida por fotos onde o tal olhar sombrio de Gloria dominava o espirito da imagem. Uma atrás da outra.

- Como é que tudo começou?

- Não estou preparada para contar isso.

- Gloria, vá lá. Daqui a nada vamos jantar e este é o melhor sitio para eu perceber o que se passa ai. Vocês já se conheciam?

- Não. Só no primeiro dia de vida.... Somos da mesma cidade, pronto.

- Gloria....

Agora sim, ela chorava. Era notório que ela queria confessar. Jamais faria sentido, no contexto da sociedade actual e no contexto em que nós vivemos em Coimbra, que Gloria se sentisse ameaçada ou intimidada de poder ter uma relação. Mesmo que fosse com uma mulher. As lágrimas incessantes dela eram uma fonte do que ia dentro dela. O episódio da noite anterior poderia ser mais do que o contexto de ter apanhado a jovem em flagrante momento sexual. A minha audácia em manter em segredo o que acontecia no quarto da minha prima, podia ser a rampa para deitar para fora da alma de Gloria o que estava a acontecer na vida dela. Eu só precisava de fazer com que aquelas lágrimas fluissem a uma foz segura. Segurei na mão dela e fixei-lhe de novo o olhar.

- Diz-me exactamente o que viste e o que achas que significa.

Ela procurou controlar a respiração. Olhou ao redor para perceber se alguém notava no rosto dela inundado em lágrimas. Inspirou fundo, lambeu o lábio superior e preparou-se. Pegou no meu telemóvel, olhou para o ecrã dois segundos e deslizou mais um conjunto de fotografias do albúm da página do seu facebook. Depois mostrou-me uma das fotos. Gloria estava sentada num muro, junto à margem do Mondego. Era noite e ao fundo estavam as luzes da longa madrugada. Quase sozinha. O tal olhar soturno dela aparentava ter ali o seu auge. Vazio, a carregar o peso de um mundo e de um outro universo. Discretamente olhei para o número de likes da foto e a data. Há quatro anos.

- Pensei em atirar-me. Se estivesse sozinha, tinha-o feito.... Tinha muitos pensamentos suicidas e levei muito tempo a perceber porquê. Guardo a fotografia para saber que foi o último dia.... Foi o último dia a sentir-me assim tão odiada por mim mesma.

Gloria passou uma fase ruím da vida. Ainda hoje, quase nenhum de nós sabe o que se passou exactamente. Creio que nem mesmo os pais dela conseguem entender como Gloria usava uma máscara de apatia constante. Como isso fez com que ela perdesse um ano inteiro de faculdade. Como ficou irreconhecivel de corpo. Como ficou rasgada de alma. Eu e o nosso grupo de amigos fizemos o possível para a manter à tona, acima da linha de água do Mondego, como um dia brincámos para desanuviar. Mas Gloria não estava bem e a razão ou solução escapavam ao mundo inteiro.

- Os meus pais levaram-me ao hospital. Encaminharam-me para uma mão cheia de especialistas e passei horas a fio em terapias. Sugeriram internamento. A minha mãe não permitiu. Falou com amigos do hospital e de pessoa em pessoa chegou a uma médica que finalmente lhe sugeriu algo um pouco descabido. Visitar a sua filha. No dia seguinte, tinha uma psicóloga a tempo inteiro.

- Grace....

A jovem loira tinha começado a exercer sem auxilio de formadores e profissionais externos. Grace passou a ter um pequeno consultório dentro da clínica que a mãe detém no centro de Coimbra. Ela tinha atravessado por uma série de etapas, em que tinha demonstrado uma capacidade enorme de aliar o conhecimento cientifico, a uma intuição invulgar. E embora o caso de Gloria parecesse demasiado intenso para a sua experiência, a minha tia aceitou o risco. Era isso ou o internamento.

- Desde o primeiro momento, a voz dela serenou-me. O sorriso deu-me conforto para regressar lá na semana seguinte. E depois duas vezes por semana. Ela ouvia-me sempre mais do que o permitido.

- Ias lá porque estavas apaixonada por ela?

- Não. Ia lá porque ela conseguiu fazer daquela sala o único sitio com tecto que eu tinha. A cada consulta ela tornava aquilo cada vez mais intimo, mais próximo. E os meus fantasmas e demónios eram o segredo só dela. Não estava apaixonada por ela. Precisava dela para respirar.

- A Grace apaixonou-se por ti.

- Sim.

As peças iam encaixando. Lentamente, eu consegui caminhar em direcção ao refúgio que ela dizia precisar, ao segredo da sua relação. Pedimos mais dois chás, para fazer tempo enquanto a tarde se dissipava por completo. A janela que tinhamos para Coimbra era a janela que dava para a intimidade de Gloria.

- Eu sorria naquela hora que passava com ela. E a Grace nunca me afastou. Passei a visitá-la sem mais ninguém saber. Para os meus pais eu já me sentia melhor. Mas para isso acontecer, para eu mostrar que estava bem, eu precisava de estar debaixo daquele tecto. Deixaram de ser consultas. Passaram a ser momentos nossos.

- Foram passados os limites éticos?

- Ela um dia perguntou-me se podia sentar-se ao meu lado. E eu deixei. E eu queria que ela se sentasse. E confortou-me. Rimo-nos. Olhámo-nos e ela já tinha deixado de ser a minha psicóloga há muitas marés atrás.

- Beijaram-se...

- Dormimos juntas no divã do consultório.

Estudei Ética na faculdade. Gloria também estudou. Grace, mais do que ninguém, sabia os limites da relação entre médico e paciente. Dormir no próprio local de trabalho com uma paciente de risco, claramente desafiava as mais elementares regras de boas práticas. O silêncio instalou-se durante uns breves momentos na nossa mesa. Gloria estava mais aliviada por saber que contou a alguém. Ainda tentava medir o que devia mais contar. Eu procurava descortinar as respostas certas a dar. Tentava idealizar os vários cenários prováveis de toda aquela história.

- Se isto se souber, é o fim da carreira da Grace.

- Mas vocês amam-se. Vais-me dizer que o amor não é superior a isto?

- Eu amo-a. Mas eu não sou superior à carreira dela.

- E vão esconder-se a vida toda?

- Sim, vamos.

- Amar em segredo é saído dos contos do Shakespeare.

- Estou viva por causa dela. Sou uma Gloria diferente por causa da Grace. E foi o dom dela, a capacidade que ela tem de mexer com a alma, que nos fez ligar. Destruir o potencial que ela tem para mudar o mundo, só porque a amo... é egoista. É egoista para com ela, é egoista para com o resto do mundo.

- E se se descobrir... Já pensaste que as pessoas podem até aceitar? Tu já estás bem e ela continua a ser uma psicóloga de sucesso.

- Era a mãe dela que arruinava tudo. A mãe da Grace é do conselho da Ordem dos Psicólogos. Se a mãe dela desconfia que eu e a Grace já demos sequer um beijo, tudo isto termina.

E Gloria não queria brincar com coisas demasiado sérias. Não queria voltar a girar o sentido do mundo, para modificar aquele que lhe permitia agora ser feliz.

- O que vais fazer? Além de marcar viagem para Honolulu? Como vais viver com alguém num constante segredo?

Gloria arrumou o telemóvel. Afastou a chávena e retirou uma nota da carteira para pagar a conta. Olhou pela janela do café e sorriu, mostrando que também ali, ela se sentia segura. Foi começando a levantar-se e eu acompanhei-a na acção.

- A Grace disse-me ontem à noite que o mundo podia deixar de existir, desde que eu e ela vivessemos debaixo do mesmo telhado. O mundo ainda existe e eu consigo olhar para ele desta janela e da janela de casa dela. Até da janela do meu quarto. E enquanto houverem estas janelas, o mundo não precisa de saber. O mundo não precisa de ver as mãos dadas da Grace e da Gloria. Nem os beijos. Nem saber dos planos. Nem do passado. Nem de saberem se são felizes ou não. A Gloria e a Grace só precisam de serem felizes com elas mesmas, na intimidade delas. O resto do mundo que viva como quiser lá fora.


E à porta do café, sorriu para mim, olhou-me e deu-me um beijo terno de agradecimento por aquele fim de tarde. O segredo dela confesso a mim vivia dentro daquela janela e em mais sitio nenhum.